domingo, 8 de janeiro de 2012

Aos cuidades de mim mesma

Há três anos conheci o amor.
Ele não é alto, moreno ou magro. Tem nome, data de publicação e autor.
Me apaixonei pelo poema "Como conversar com garotas em festas" - Neil Gaiman, e de tanto o querer, considero que tornou-se meu, por isso quero deixá-lo aqui, isso faz com que eu sinta que ele é "mais meu".

— Qual é o seu nome? — perguntei.
— Triolé.
— Nome bonito — eu disse, mesmo duvidando daquilo. Mas ela era bonita.
— É um tipo de poesia — explicou a garota, com orgulho. — Como eu.
— Você é um poema?
— Você é um poema? — repeti. Ela mordeu o lábio inferior:
— Se você quiser. Sou um poema, ou um padrão, ou uma raça cujo mundo foi tragado pelo mar.
— Não é difícil ser três coisas ao mesmo tempo?
— Qual o seu nome? -Enn.
— Então você é Enn — ela disse. — E você é do sexo masculino. E é um bípede. É difícil ser três coisas ao mesmo tempo?
— Mas não são coisas diferentes. Quero dizer, não são contraditórias. — Era uma palavra que eu havia lido muitas vezes, mas nunca dito em voz alta antes daquela noite, e acentuei a sílaba errada. Contradítorias.
— Sabíamos que o fim estava próximo, por isso pusemos tudo num poema, para contar ao universo quem éramos, por que estávamos aqui e o que dizíamos, fazíamos, pensávamos, sonhávamos, desejávamos. Embrulhamos nossos sonhos em palavras e moldamos as palavras para que vivessem para sempre, inesquecíveis. Depois, enviamos o poema como um padrão de fluxo, para aguardar no coração de uma estrela, emitindo sua mensagem em pulsos, erupções e chiados por todo o espectro eletromagnético, até que, em mundos a mil sistemas solares dali, o padrão fosse decodificado e lido, e se tornasse um poema de novo.
— E aí o que aconteceu?
— É impossível ouvir um poema sem que ele mude você — observou ela. — Eles o ouviram, e o poema os colonizou, tomou posse deles, e os habitou.
Os ritmos do poema passaram a fazer parte do modo de pensar deles. Suas imagens transformaram para sempre as metáforas deles. Seus versos, seu modo de ver, suas aspirações se tornaram a vida deles. Depois de uma geração, as crianças já nasciam sabendo o poema, e logo, porque essas coisas são assim, já não nasciam mais crianças. Não havia necessidade delas, não mais. Só havia um poema feito carne que andava e proliferava por toda a vastidão do conhecido.
— Você quer ouvir? — perguntou, e fiz que sim, sem saber direito o que ela estava oferecendo, mas convencido de que precisava de qualquer coisa que ela estivesse disposta a me dar.
Ela começou a sussurrar algo no meu ouvido. Isso é o mais estranho na poesia — dá pra saber que é poesia, mesmo quando é numa língua que a gente não conhece. Você pode ouvir Homero sem entender uma palavra, e mesmo assim sabe que é poesia. Já ouvi poesia polonesa, poesia inuíte, e eu sabia o que era sem saber. Seu sussurro era assim. Eu não entendia a língua, mas suas palavras me atravessavam, perfeitas, e em minha mente eu via torres de vidro e diamante, pessoas com olhos do verde mais pálido, e, por baixo de cada sílaba, sentia o avançar sem trégua do oceano invencível.
Talvez eu a tenha beijado de verdade. Não me lembro. Só sei que eu queria.
E aí Vic me chacoalhou com violência.
— Vamos! — ele gritava. — Depressa. Vamos!
Esqueci muita coisa, e vou esquecer mais, e no fim vou esquecer tudo. No entanto, se eu tenho alguma certeza de vida após a morte, ela está envolta não em salmos ou cantos religiosos, mas apenas nisto: sei que jamais vou esquecer aquele momento, ou a expressão no rosto de Stella quando ela viu Vic se afastando às pressas. Até depois de morto vou me lembrar.
Suas roupas estavam amarrotadas, sua maquiagem estava borrada, e seus olhos…
Nunca deixe um universo furioso. Aposto que um universo furioso olharia pra você com aqueles olhos.
Enquanto eu o seguia pela rua, no crepúsculo, marcando com os passos a métrica de um poema que, por mais que tentasse, não conseguia lembrar e jamais seria capaz de repetir.

- Neil Gaiman in “Coisas Frágeis”

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